quinta-feira, 20 de outubro de 2016

DESILÊNCIO

Chego ao ápice da crise do desejo!

Não fui ensinada a desejar, fui ensinada apenas a cumprir. E o pouco desejo que foi me surgindo ao longo da trajetória, nascia no contraponto daquilo que era imposto.
 O único espaço para desejo foi o que era revelado na sombra da cobrança.

 Ao crescer ouvindo "Seja Feminina!", ou ouvia dizer de duas únicas condições existenciais: Ser feminina ou ser masculina.
 Quando me impunham que eu fosse feminina, a algum ponto eu entendi que aquela ordem nascia da falta de feminilidade em alguns comportamentos meus, e muito cedo entendi que então o que era de fato meu era exatamente o oposto da ordem, ou seja, ser masculina.
 E naturalmente aquele ia sendo o "desejo-de-eu", fui me construindo na luz do que era dito sobre mim, que ia sendo internalizado na medida que eu me reconhecia naquilo, e na sombra do que me era ordenado, na medida em que falava das coisas que existiam em mim, mas não eram muito adaptadas ao que era esperado de uma garota.

 O problema é que na imaturidade do inicio da vida, eu fui levando esses ditos cada vez mais a ferro e fogo, e em dado momento me vi presa numa redoma de palavras que me aprisionavam numa identificação massiva com o masculino mesclada a uma série de obrigações com o cuidado, a maternidade e tantas outras características socialmente impostas ao feminino, inclusive a dificuldade de usar da minha agressividade para galgar espaços profissionais.

 Foi então que em algum momento eu consegui destruir essa prisão. Mas o que as prisões causam em nossas vidas? Quais são as consequência para aqueles que após anos de enclausuramento se vêm soltos nas ruas, e com infinitas possibilidades de exercer suas liberdades?
 Bom, eu me vi perdida.

Algumas marcas dessas prisões ainda me acompanham, mas jã não são o suficiente para me impedirem de caminhar. Mas me ponho na calçada, sentada ao chão. E choro.
Não sei para onde ir. Não sei para onde quero ir. E também não sei pedir ajuda.
Ouço relatos daqueles que pedem ajuda e de fato caminham muito neste mundo, mas vejo esses relatos em corpos masculinos e sinto uma dificuldade enorme de acreditar que conseguiria ajuda.

 Pela primeira vez em minha vida reconheço o feminino em mim como potência, e no entanto, não sei para onde caminhar. Não sei muito bem quem sou, mais. Não sei o que desejo; Os meus sonhos parecem vagos e muito distantes de mim; O Deus todo poderoso parece não mais operar em minha existência na medida em que me encontro com a Sagrado Feminino, e pela primeira vez em minha vida me sinto completamente impotente e sem poder criador e concretizador.

 As ironias que nos cercas... O Sagrado Feminino, o poder universal da criação, da condição da existência de tudo, poder da terra, transformador e amoroso, e eu sentindo me impotente.

 Eu caminhava num caminho falso, idealizado por um eu masculinizado e distante da minha própria verdade interior. Um eu que precisava sobreviver a violência e outras condições adversas da vida, e que para tanto, como mulher, aprendeu a andar com gingado malandro e cara fechada dentre bairros de alto índice de criminalidade, um eu que pouco a pouco me habita menos e menos, e com o qual eu já cumpro as despedidas.
 Frente a isso, parece tão obvio que os caminhos irão mudar drasticamente, parece tão claro que os lugares para que eu estava caminhando agora, passarão a aos poucos se dissolverem em meu caminho, para que outras possibilidades surjam.
 Mas na medida em que assisto e vivo tudo isso, não consigo ter a calma e a sutileza que as linhas anteriores traduzem. Eu me desespero, me recuso, me repudio. Eu choro.

 Eu choro porque estou com fome. Fome de vida genuína. Fome de saber melhor quem eu sou.
 Fome de mim!

terça-feira, 11 de outubro de 2016

DESCONCERTO!

Nasci MULHER
Com os nãos prontos para me serem dados.
Fui ensinada a cuidar e a restaurar.
"Restaure. Concerte tudo que puder. É nisso que és boa, és boa em concertar pessoas."

 Primeira mentira!!

Estou exausta dos concertos! Essa história cansativa de compor melodias menos pavorosas, de harmonizar e criar escalas que se encaixem e sejam belas...

 Estou de saco cheio da mentira que contei pra mim mesma.
 Estou de saco cheio de acreditar que preciso de outra pessoa para ter permissão de ser eu mesma.

 Chega!

Não sei quem sou, mas não serei mais quem concerta coisa alguma!

Uma Fração Sobre Aquela Viagem

 Quase um ano de expedição marítima, e uma conclusão não tão surpreendente já se revela. Estar em alta mar causa náuseas, te faz deslumbras com as belezas naturais, te faz gostar menos de azul, e te ensina o que é sentir sede de terra firme.
 Eu já achei que o mar era meu paraíso, também meu inferno, e em ambos momentos estive certa. Ai que saudade de terra firme a vista, que saudade do antigo arquipélago que ao menos me era familiar.
 Acreditar estar acompanhada, mas não há viagem que se acompanhe quando as tormentas são severas de mais e resta apenas a tentativa cooperativa de se sobreviver, hora olhando por si mesmo, hora tentando salvar o outro.

 Quase um ano se passou e eu ainda não tive coragem de colocar as mãos no leme. Ensaio, penso, refuto. Me convenço que é melhor o inferno acompanhado do que a eternidade num paraíso solitário.
 Me finjo heroína, perdoou, salvo, desbravo novos pedaços de Mar, e continuo deixando os ventos me puxarem e empurrarem em multi direções, a esmo.

 Esse sol ressecou minha pele, e hoje não tive vontade de cuidar. Hoje deitei no convés do navio e nada fiz além de encarar o sol que ardia minha face. Hoje tive sede, e não bebi água; tive fome e não me alimentei; entristeci e não chorei; hoje fui seca, como nunca antes. Fui parte da madeira rígida que compõe a estrutura da embarcação.

Dessa minha estupida embarcação que caminha para lugar algum, e que está sozinha, finalmente sozinha.

 Que minha solidão me liberte de minha escravidão!